Presente Passado. [2]

A casa da avó se conserva da mesma forma. Os tijolinhos de barro, o muro de reboco agreste, o telhado vermelho.
Apresenta-se aos olhos da criança adulta com o cheirinho de pão no forno, café quente no bule e biscoitos no pote sobre a mesa.
E a menina entra. Lembra da infância bem vivida, das canções de ninar e dos amigos gatos e cães com quem dividia o último pedaço do seu bolo favorito sabor limão.
Limpa os pés no tapete bordado que sua avó fez muitos anos antes dela nascer e respira fundo o ar de estar novamente em seu lar.
Sim, seu. O lar dela, as memórias dela e tantas outras espertezas, saberes e malcriações de ser filha única.
Recorda o tempo em que era alegre sentar na varanda, tomar banho de chuva, subir em árvore e nadar no rio.
Volta ao passado que ali é tão presente que nem se vê a hora passar, e fica.
Fica lá; onde tudo foi fácil, gostoso e cheio de expectativas. Permanece intocada no seu lugar sagrado.
Encontra na sala os porta-retratos enfeitados com o biscuit do seu primeiro trabalho artístico na escola. Percorre com os dedos e olhos, e sentidos (os outros) bem abertos e se deixa devanear entre quem foi, quem é e o que fará dela mesma a partir dalí.
Encontra-se logo então. Não do jeito que gostaria; não como a planilha preparada posta na bolsa.
Encontra-se no olhar acolhedor da avó, no olhar que perdoa tudo e tudo sara. No olhar que alimenta alma sedenta de consolo materno. E chora o choro preso na garganta. O choro que não chorou quando precisou dizer "adeus" a pessoa mais amada: sua avó querida.
E se arrepende, e pede desculpas e chora mais e mais.
A avó compreende, é claro. Mas fica quieta permitindo a neta diga àquilo que deveria ter sido tido, mas que não encontrou forças em si para romper a sela que é a boca.
Come um pedaço do pão ainda quente, acalma os ânimos com uma boa xícara de café levemente adocicado e volta ao quintal onde experimentou o prazer de se ter uma mente fértil. Lugar em que virava princesa, sereia e até o diabo, mas raramente ela brincava de diabo; só quando queria cometer pecado.
E sorri para o Pedro, o filhote mais novo de uma ninhada de seis gatos. O Pedro... E sorri outra vez. 
Ela adorava dar banhos gelados no Pedro apenas por judiação, para satisfazer a fúria infantil que é ver bicho sofrendo. Agora o Pedro é uma bola de pêlo, gordo e manhoso passeando entre as pernas de quem quer que seja. E sorri. E como sorri na casa da avó. E como se sente protegida na casa da avó, e como ela mesma é melhor pessoa estando lá. Sua avó amada...
E sorri internamente o maior e espetacular sorriso: o de quem faz algo errado e gosta do mal feito.
E lá está, no canto mais afastado depois das belas flores, a caixa sob a qual jaz o cágado. O animal que ainda lhe provoca repulsa e o qual ela não sentiu nenhuma dor da morte morrida e vida matada por ela.
E volta aos braços da avó com um sorriso enorme na cara.
- O que foi Bia?
- Nada não vó, lembrei-me do Guh, apenas.
- O cágado?
- Esse mesmo.
- Afinal, você sabe como ele morreu?
- Não. Eu só sei onde ele foi enterrado.


Esse texto já havia sido postado no Insensatez. Mas lendo ele essa noite, eu percebi o quanto algumas recordações da minha infância são sublimes e o quanto eu escrevo "torto"... Eu escrevi esse texto para o blog da minha prima, o Meu Diário.com; mas este já está inativo há muito tempo. Prometi postar textos que são de outras partes da minha vida e de outras pessoas às quartas... Mas vai assim na segunda/terça mesmo. Na quarta eu postarei um poema fofinho que a Carla fez para mim em 2008/2009. Kisses, Baby's!


3 Comentários:

Inercya comentou:

Bell, sinto uma leveza dentro de mim ao ler tuas palavras. Os minimos detalhes deixam a história mais bonita, mais viva e é disso que eu gosto de ler por aqui. A simplicidade é carregada pela naturalidade e é assim que o texto fica bonito.
Gostei muito! :D
;*

Marcos de Sousa comentou:

Lindo texto. Saudades da infância é algo muito belo. Às vezes sinto também... É realmente algo inspirador.


Beijos

Luiz Neves de Castro comentou:

Estou convicto de que estamos diante de uma grande escritora em formação. Grato por participar comentando na Egrégora: Carrancas Literárias. Desejo muito sucesso e um carinhoso abraço

 
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