O Pianista.

Ele entrou no salão de festa ao som do Piano de Cauda. 
A melodia era repleta de sentimentos; uma composição forte, mas suavemente delicada aos ouvidos.
Pensou ele que precisaria de cem dedos, no mínimo, se um dia lhe ocorresse o ímpeto de reproduzi-la.
Não conseguiu ver quem a tocava, entretanto tinha certeza se tratar de uma pessoa extraordinária. Alguém dotado de um talento nato...
Os giros dos casais que valsavam ao som da música doce e luxuriosa o fizeram sorrir. Compreendia que poucos ali compartilhavam a mesma emoção que sentia ao som inquietante das notas; e sem aviso, o Piano ficou quase mudo.
Fez-se um eco grave no salão que perdurou sob o toque do dedo do maestro e, sem explicar a razão para o novo enredo, o criador de tal sublime expressão sonora entregou aos ouvintes o tilintar brando, sutil e apaixonado que já preenchera aquele ambiente.
O rapaz de smoking azul-marinho, contrastando com os olhos azuis semi-transparentes, viu-se em um campo aberto cercado pelas tulipas brancas que sua mãe cultivava no jardim de casa, anos antes dele próprio saber o significado daquelas flores em forma de casulo.
A música despertava nele uma vontade incontida de reviver o dia do seu primeiro beijo. Fechou os olhos e seguiu, no pensamento, em direção a árvore de raízes grossas que completava a beleza do jardim. E quando reabriu os olhos, depois de saborear o lugar das suas memórias, a melodia trouxe diante dele a menina Clara - o seu amor da infância.

Ele não estava mais no salão de festas e sim, beijando com ternura a pequena criança de sardas no rosto e olhos cor de mel.
Nunca pensou que pudesse ter outra vez seu momento mais belo e, ao som daquela composição dos anjos. Afagou, na realidade distante do quintal de casa, o cabelo da Clara guardando-a aninhada em seu peito enquanto a música ia se perdendo em um desfecho delicado como as tulipas no jardim; com esforço, ele foi capaz de voltar a realidade da festa.
O rapaz precisava desesperadamente agradecer ao Pianista maravilhoso por lhe proporcionar o resgate das suas emoções. 
Esbarrando em algumas pessoas que se abraçavam ao final da música, ele conseguiu atravessar o salão e encontrar o Piano que fora colocado na extremidade da sala. 
O Piano que havia lhe fascinado durante toda a noite estava vazio da presença que o rapaz de smoking azul-marinho projetara ao ouvir a canção.
Não se tratava de um pianista maduro - homem sábio aprimorado pela experiência proveniente do tempo - ao contrário; sentada de frente ao Piano de Cauda, ocupando o lugar do maestro estava a bela moça dona da melodia que foi capaz de afugentar os demônios do seu coração sombrio. Ela era a pessoa responsável pela sua viagem de volta à Clara.
Cuidadosamente, preparando-se para uma nova canção, a moça fitou o rapaz que a olhava curioso e assustado.

Eram os mesmos olhos cor de mel, as mesmas pintas decorando a face, e foi assim que ele soube o motivo da música lhe levar ao primeiro beijo. Sem partitura ou qualquer ensaio, a complexidade da alma infantil ao encontrar outra alma de igual valor se refez intacta.

O que aconteceu depois fica a critério da sua imaginação, meu caro leitor. A minha missão havia chegado ao fim. Apenas posso dizer neste breve relato que estendi as minhas asas sobre o casal de espírito - almas gêmeas por criação - e deixei que o céu me levasse pelo caminho da guarda dos outros mortais; aqueles que sorriem para mim e se entregam sem reservas ao seu semelhante.
E que a minha missão permaneça esta: entregar aos humanos o amor incondicional que se eterniza pelo selo da boca - os lábios.


É isso, pessoas. Esse conto estava fervendo na minha cabeça há dias. O texto foi inspirado na música Redenção da minha banda do coração Muse. Espero que vocês possam ler até o final e que comentem bastante porque a opinião de todos é importante. Um grande beijo, até a próxima.


5 Comentários:

Isadora Peres comentou:

Nossa, muito lindo. Senti todas as notas daqui. É como se a música fosse tão real e densa que é percebida em cada linha. Adorei!

Beijos.

p.s.: A música do Muse que você colocou me lembra uma banda chamada Sigur Rós, que adoro. (:

Mila. comentou:

Texto perfeito, o jeito como você descreve cada ato e cada decoração. Muito bom mesmo, to te seguindo aqui, beijos :*

Anônimo comentou:

"E que a minha missão permaneça esta: entregar aos humanos o amor incondicional que se eterniza pelo selo da boca - os lábios." Caramba, arrepiou!

Eu não sei como te explicar o que senti lendo seu texto... Só sei que suas palavras não parecem um amontoado de palavras juntas, elas estão enlaçadas e me deixou maravilhada. Amei!

Beijos

Inercya comentou:

Maravilhoso conto, Bell. Estava aqui, aberto, para ser o último a ser lido. Pude ler e extrair cada cena. Realmente incrível! E uma delícia de se ler. Tento agora imaginar o que aconteceu depois dessa troca de olhares...
Lindo!
;**

Monique Premazzi comentou:

Adoro esse jeito doce que se sonha com um pianista, tão belo. Amei o texto, Bell. Você sempre me fazendo sonhar com suas palavras. E inspiração boa veio ein? Muse incrivel! <3

 
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