Quase um segredo.

Paulinha conheceu Júlio na quinta série, ele era um garoto baixo, magro, de óculos garrafais no rosto, aparelho maciço nos dentes, extremamente tímido. Raras vezes conseguia encarar uma menina e, muito dificilmente, possuía coragem para falar com ela mesmo que fosse para pedir o apontador emprestado.
Paula era o seu oposto; falava pelos cotovelos, ria de tudo e distribuía abraços sempre que via uma amiga cabisbaixa ou um garoto chorando num canto qualquer. 
Sua mãe conservava a mesma inocente cordialidade do ensino fundamental e ela esperava poder fazer o mesmo. 

Júlio vinha de uma família serena. Sua descendência japonesa transparecia nos costumes muito mais que na aparência. Vestia-se como um garoto brasileiro normal embora sua avó insistisse que levasse a sério sua cultura, mas em sua idade a formalidade recebia menos importância. 
Seus pais eram passivos, tão calmos que achavam divertido o filho querer ser diferente.
E assim cresceu Júlio: brasileiro em família estrangeira.


Em uma sexta-feira aparentemente comum, as amigas de Paula levaram para a escola um bolo de aniversário, Paula estava ficando mais velha, completara onze anos de vida.
Confeitaram o bolo com jujubas e confetes de chocolate coloridos e puseram sobre ele onze velinhas cor-de-rosa; a cor favorita dela. Estenderam uma toalha amarela no gramado sob a maior árvore do pátio, arrumaram os copos e pratinhos ordenadamente e os talheres foram enfileirados presos aos guardanapos de papel.
Mentiram tão descaradamente que Paula não sonharia, nem se vivesse mil anos, com essa surpresa.
Sendo assim, tudo ocorreu, quase, como deveria ser segundo os planos das suas amigas.


Paulinha, atenta aos mínimos detalhes viu no outro extremo do pátio o garoto estranho da sala.
Ela sabia que ele não tinha amigos e que era uma pessoa tímida. Ela já tentara puxar assunto outras vezes, mas ele sempre ficava vermelho demais para dar uma resposta.
Em meio aos gritinhos de prazer das garotas que a cercavam, pedaços de bolos que eram servidos, brigadeiros e guaraná ela levantou da toalha amarela com seu pedaço de bolo na mão e foi sentar, do outro lado, com o garoto que ela só conhecia o nome.
Sentou sem dizer uma palavra, nem mesmo um "oi", estendendo o prato com bolo para que ele comesse um pedaço.
Ele a olhou de soslaio, ponderou a situação, mas aceitou sem protestos o bolo oferecido pela menina. E ali ficaram comendo o bolo sem trocar palavras enquanto as amigas de Paula a fitavam severamente.
Magoadas, elas perderam o interesse na festa, guardaram tudo e seguiram para a sala.
E foi assim que Paula conheceu Júlio e desde então eles são inseparáveis.

Brincaram juntos de bicicleta, patins e pula-corda. Ele aprendeu a não achar infantil demais brincar de boneca e ela aprendeu a respeitar suas partidas de futebol-de-botão. Júlio ensinou Paula a nadar quando se tornaram grandes o bastante para ir à praia sem seus pais, e ela o ensinou a beijar, dançar e todas as outras coisas que só se aprende quando se ama.

Agora com vinte e seis anos (a mesma idade que Paula) Júlio pretende pedi-la em casamento, porém tem medo.

Senti um medo mortal, um medo que faz seus músculos tremerem sob o terno azul-marinho. Um medo que se funde aos ossos. Nunca sentiu nada parecido, mas sabe que a sua decisão é a correta. É a única decisão a tomar.
Ele a ama e a amará para sempre custe o que custar.
Recebe a bênção da sua avó e a ouve dizer que agora poderá morrer em paz; ele já é homem feito.
Sua mãe lhe dá de presente o seu anel de noivado e diz ao filho o quanto foi feliz e o quanto continua sendo.

Paula acordou nervosa essa manhã. Não sabia explicar o que tinha acontecido ou o que iria acontecer, mas sabia que era algo grande, algo que mudaria sua vida. Tentou telefonar para Júlio, mas o telefone estava ocupado. Viu toda a sua insegurança de adulto jorrar como num cano estourado. Sua mãe tagarelava coisas sem sentido para acalmá-la, mas não fazia efeito. Apenas Júlio conseguiria deixá-la relaxada, segura.
Em seu ser pressentiu a magnitude desse dia, respirou fundo e tentou ficar tranqüila.
Sua mãe, sabendo as intenções de Júlio, fez com que a filha vestisse o mesmo vestido que usou quando foi pedida em casamento. Paula suou frio, chorou durante meia hora, andou de um lado para o outro e por fim, vestiu o vestido que lhe coube ainda melhor que em sua mãe.

No clímax do desespero as duas mulheres ouviram emocionadas o som da campainha. 
Saindo correndo Paula abriu a porta e se deixou perder no poço fundo e escuro que eram os olhos do seu amado; o tormento das horas de espera se dissipou feito nuvem em dia de sol.
Júlio não permitiu que ela falasse nada, apenas colocou o anel em seu dedo, deu-lhe um beijo apaixonado e deixou que o tempo lhe carregasse para o passado. 
Ficaram ali, parados na porta, contemplando um ao outro, olho no olho, sorriso por sorriso. Fizeram exatamente como quando crianças no dia em que Júlio conheceu Paula, no dia que Paula lhe ofereceu um pedaço de bolo.


"Você me faz bem quando chega perto com esse seu sorriso aberto."

73ª Edição Musical, Bloínquês
O texto é enooooooorme, eu sei. Dá vontade de fechar a página só de olhar. Mas acredito que seja o meu texto mais inocente, mais doce, mais repleto de delicadeza. Amor em sua essência, ser primitivo.

6 Comentários:

Jussara Nascimento comentou:

Own, achei tão fofo *-* rs
Queria um amor assim...

Maiara comentou:

O tamanho do texto passou completamente despercebido por meus olhos que reluziram a cada traço delicado que as suas palavras criaram.
Fiquei aqui perdida entre os olhos mudos que conversam mais que mil palavras; entre sorrisos abertos cheios de sinceridade. Em suma, foi lindo além de doce; meigo além de encantador. E depois de tantas linhas tênues, me sinto mais leve, porque palavras assim são capazes de nos fazer planar.

Beijo grande.

Jaynne Santos comentou:

Bel, que texto mais docemente encantador. Enorme? Eu achei pequeno demais, cada linha derretia-se pela língua quando lida. Invadiram meus olhos, penetraram no meu âmago sentimental, fizeram abrigo na minha caixinha de estórias que marcaram.
Que casal mais fofo e bonito. Que prova literária de se mostrar que ainda é possível amar com um amor verdadeiro, puro e inocente.

Beijos;

Leeti comentou:

Aiii, que lindo *-*
Eu quero um Júlio também *O*
kkk'
Adorei mesmo :)
Beeijo ;*

Compartilhando Sentidos comentou:

Lindas palavras e de uma sensibilidade tamanha!

Muito bom!

Bjocas e dá uma passada no meu cantinho...

http://compartilhandosentidos.blogspot.com/

ESTIMANDO comentou:

Delicado e leve, um texto que nos faz sonhar e querer um amor assim. Gosto de quando vc escreve nesse estilo!

:)

 
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